Puxada de rede na praia do Itaguá - década de 1980 (Arquivo Caiçara
Ubatuba) |
Orgulhosamente começo este a partir
da frase do amigo Peter Santos Németh (o “Alemão”) em relação à Ilha Anchieta,
antiga Ilha dos Porcos:
“A Ilha Anchieta é um universo mais grandioso e
complexo do que um simplório presídio”.
Foi a História da Ilha Anchieta e o grande envolvimento do Peter com a vida dos pescadores caiçaras que desembocou nesse trabalho muito importante (A TRADIÇÃO PESQUEIRA CAIÇARA DOS MARES DA ILHA ANCHIETA: A INTERDIÇÃO DOS TERRITÓRIOS PESQUEIROS ANCESTRAIS E A REPRODUÇÃO SOCIOCULTURAL LOCAL)
Me apegarei a
uma parte que eu acompanhei bem. Afinal, eu nasci quando as comunidades do lado
Sul estavam deixando seu isolamento cultural devido às levas de turistas
advindas da abertura da estrada Ubatuba-Caraguatatuba, em meados do século XX.
Disso afloraram os loteamentos, as construções pelos jundus e costeiras, os
muros demarcando terrenos, as modernas formas de exploração e de alienação.
O relativo
isolamento do caiçara paulista, causado por sucessivos altos e baixos
econômicos (VIANNA, 2008: p.258) do litoral sudeste brasileiro, deve ser visto
não como um isolamento de fato. Sempre que necessário essas pequenas
comunidades litorâneas, “aproveitando-se das menores condições que pudessem ser
favoráveis ao homem”, gravitaram economicamente em torno dos grandes centros
comerciais, “enviando-lhes sua parca produção - farinha de mandioca, peixe,
algum café” e aguardente em canoas de voga. Viagens que proporcionaram a
“oportunidade de se ganhar um excedente que complementasse a produção doméstica
em comunidades relativamente auto-suficientes”. (MUSSOLINI, 1980: p.221-226).
Foi esse isolamento
relativo que garantiu a tenência de saberes e fazeres culturalmente
diferenciados por essas comunidades, e que de certo modo manteve o patrimônio
cultural tradicional protegido até meados dos anos 30, quando por pressão de um
novo mercado emergente consumidor de pescado, essas comunidades caiçaras
passaram a se dedicar mais intensivamente à pesca e ao universo marítimo (DIEGUES,
1973;1983; ADAMS, 2000).
Essa mudança fez
surgir entre os caiçaras o que Mourão chamou de “ideologia da pesca”, além de
uma nova noção de trabalho: Em vista disso, atualmente, os antigos caiçaras
paulistas, hoje em parte convertidos em pescadores exclusivos, reordenam seu
modo de vida e seu referencial cultural, os quais passam a se articular mais
intensamente, ao contrário do passado, com o universo marítimo. (ADAMS, 2000:
p.155). O caiçara passou então a agregar novos valores externos, como pescar além
das necessidades de “subsistência”, gerando excedente suficiente para comprar
pequenos motores e redes de nylon que melhoravam os resultados da pesca,
alimentando o círculo vicioso de exploração e dependência econômica que
culminou na crise de sobrepesca dos anos 1970.
A renda na pescaria
é meio fraca né... antes Alemão, prá começá: num tinha água, num tinha luz,
essas coisa pra pagá (contas), você andava sossegado. Adepois, também, claro,
as coisa foram mudando, que tinha água e luz, você tinha que se daná porque no
fim do mês você tinha que tê o dinheiro né? Você tava devendo... então mudô
muito... (DOS SANTOS, 2015, comunicação pessoal)
A princípio essas
novas visões de mundo e valores não tradicionais, agregados pelos pescadores
locais, geraram um grande impacto sociocultural, o da sobrepesca estimulada
pelo aumento do consumo urbano de pescados. Pescar muito além do volume
consumido localmente, causou a sobre-explotação dos estoques pesqueiros através
do uso de técnicas mais agressivas (ALMEIDA, 2005: p.58), tais como o arrasto
de porta motorizado, e as parelhas.
A sobrepesca
resulta da erosão das normas de autocontrole, da prudência e da solidariedade
comunitária. Ela ocorre quando os pescadores não se preocupam com o recurso,
com sua comunidade e com os outros. Então sua capacidade de se comunicarem
entre si, de concordarem e cooperarem se perde. (Jentoft, 2000 apud BERKES et
al., 2006: p.251)
Outra
característica observada localmente foi a do peixe capturado ser considerado
pelos pescadores locais, como “dinheiro em caixa”. Chegando à praia, o balaio
de peixes se transforma imediatamente em “dinheiro vivo” (DIEGUES, 1983:
p.152), pois a venda é feita diretamente ao consumidor (Figura 23), que muitas
vezes está aguardando a chegada do pescador (KANT DE LIMA e PEREIRA, 1997:
p.238).
Agora, concluo neste tempo de tantos pobres
enganados pelas mentiras disseminadas nas redes sociais e em muitas igreja: na
verdade, cada ilha deste território caiçara, cada praia, cada costeira, cada
mangue... enfim, todo este chão tão caro ao nosso povo é um universo muito
grandioso para ser colocado apenas como fonte de riqueza para uns pouquíssimos.
Prova disso, dessa escalada contra os mais pobres, sobretudo àqueles que
dependem do mar mais diretamente, que garantem nossos pescados, é a PROPOSTA DE
EMENDA À CONSTITUIÇÃO N° 3, DE 2022 (nº 39/2011, na Câmara dos Deputados) que
vai na direção de propor uma simples mudança de transferência de propriedade
dessas terras do governo federal para estados e municípios. Mas, na verdade, é
um aceno para que esses entes possam privatizar, edificar, aterrar etc. O
projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados. Ubatuba e todo território do
povo caiçara só tem a perder caso as riquezas públicas garantidas pela
Constituição de 1988 de que “as praias são bens públicos de uso comum do povo,
sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar” (Artigo 10 da
Lei nº 7.661) passem ao controle de grupos econômicos e políticos locais,
resultando em privilégios de poucos. Podemos muito brevemente começar uma prosa
assim: “No tempo em que essas praias, essas ilhas e essas costeiras eram do
povo...”. Cruz credo! Contra esta possibilidade, me apego a uma frase de Paulo
Freire: "Esperançar é ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa
capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras".
Recomendo a leitura: A TRADIÇÃO PESQUEIRA
CAIÇARA DOS MARES DA ILHA ANCHIETA: A INTERDIÇÃO DOS TERRITÓRIOS PESQUEIROS
ANCESTRAIS E A REPRODUÇÃO SOCIOCULTURAL LOCAL, desse autor (Peter) da praia
da Enseada, em Ubatuba.
Postado por José Ronaldo
Nenhum comentário:
Postar um comentário