"Perdi o amor da minha vida, com quem estava há 45
anos."
A aposentada paranaense Maria Helena Barroso, de 64 anos,
relembra assim a morte de seu marido, em 2017, por causa de um câncer.
Ela conta que abdicou de praticamente tudo para se dedicar
integralmente por 14 meses ao companheiro, que tratava um tumor de pâncreas em
estágio avançado.
"Para dar todo meu apoio, parei de frequentar minhas
aulas de pilates e de hidroginástica (que fazia com ele), de visitar amigas e
ir à igreja", diz.
No fim do tratamento, a família optou pelos cuidados
paliativos em casa, e o marido de Maria Helena partiu enquanto eles estavam de
mãos dadas uma última vez.
Depois da morte dele, a aposentada foi diagnosticada com
depressão e chegou a perder muito peso.
"De um dia para o outro, passei a morar sozinha. Sentia
uma tristeza muito grande", lembra ela.
"Ao mesmo tempo, passei a receber ligações e mensagens
de WhatsApp com tentativas de golpe depois que passei a receber a aposentadoria
dele."
Mudanças na rotina também contribuíram para que Maria Helena
tivesse crises de ansiedade. Ela conta que sentia uma angústia muito grande ao
ter que assumir tarefas do dia-a-dia que antes cabiam ao seu marido, como tirar
dinheiro no caixa eletrônico.
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queda no Centro (Dailymotion)
Os filhos insistiram que ela buscasse ajuda médica, mas
Maria Helena diz que acreditava, na época, que conseguiria se curar com ajuda
de sua fé.
"Eu tinha tentado intensificar minhas orações e
recorrer ao exercício físico, que eu tinha retomado", diz. "Foram uns
seis meses até eu aceitar que precisava de ajuda."
É comum que idosos com depressão demorem a perceber e a
aceitar que estão com a doença, segundo especialistas ouvidos pela BBC News
Brasil.
Além disso, familiares costumam não identificar os sinais da
depressão em pessoas da terceira idade por acharem que mudanças de
comportamento são naturais nessa fase da vida, diz Natan Chehter, médico do
Hospital Estadual Mário Covas e membro da Sociedade Brasileira de Geriatria e
Gerontologia.
"Depressão tem um estigma, e, no idoso, muito
mais", diz Chehter.
"Se a pessoa nunca teve alteração de humor, nunca foi
deprimida, ela pode, eventualmente, achar que não tem nada", afirma.
O especialista reforça que, se um idoso passa a se comportar
de uma forma diferente do habitual, isso precisa ser devidamente investigado:
"Não pode atribuir tudo à idade".
Fatores desencadeantes
A depressão é um transtorno biológico no qual a pessoa perde
o interesse ou prazer em relação a algo que tinha antes, afetando sua vida
pessoal, profissional e social.
Segundo os últimos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) publicados no Observatório Nacional da Família, do
Governo Federal, 10,2% das pessoas com 18 anos ou mais de idade referiram ter
recebido o diagnóstico de depressão.
Os idosos com 60 a 64 anos representavam a faixa etária
proporcionalmente mais afetada, com 13,2%. Os de 65 a 74 anos apareciam com
11,8%. E, por último, os de 75 ou mais, 10,2%.
Essa doença tem características próprias entre idosos,
explica Rita Reis Ferreira, psiquiatra do Programa Terceira Idade do Instituto
de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Embora vários fatores possam desencadear a depressão, o
próprio envelhecimento contribui para isso, diz Ferreira.
A médica explica que doenças cerebrovasculares, provocadas
por diabetes, hipertensão e outras, podem atingir os vasos do cérebro e
danificar o funcionamento do órgão, ocasionando uma depressão vascular.
Nos jovens, fatores biológicos como hipotiroidismo e até
câncer podem gerar o problema. O que difere a condição entre essas faixas
etárias, segundo os especialistas, realmente são os problemas vasculares nos
idosos.
"É uma depressão em geral muito grave", explica a
médica.
"Quando fazemos ressonância magnética, encontramos
lesões vasculares. Com o passar do tempo, nosso sistema vascular vai ficando pior.
O sistema vascular de um idoso é diferente de um jovem."
Além disso, doenças clínicas como hipertensão, tabagismo e a
própria falta de atividade física minam a saúde do indivíduo ao longo dos anos,
gerando consequências no futuro.
"O que vai acontecer é que os problemas vão surgir
tardiamente. Todas as doenças existem clinicamente, mas as suas repercussões
surgem ao longo do tempo ", alerta Ferreira.
A solidão frequente também contribui para um quadro
depressivo, segundo especialistas. Isso foi mostrado inclusive em pesquisa
publicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2023.
O estudo Solidão e sua associação com indicadores
sociodemográficos e de saúde em adultos e idosos brasileiros: ELSI-Brasil
apontou que a depressão é quatro vezes mais comum entre idosos que relatam se
sentirem sempre sozinhos.
Já os indivíduos que moravam sozinhos apresentaram índices
mais altos de solidão do que os que moravam com uma ou mais pessoas. Os dados
revelam ainda que os níveis de solidão em mulheres idosas são mais altos que os
dos homens.
O geriatra Leonardo Bernal, professor da Faculdade de
Medicina do ABC, aponta ainda questões socioeconômicas para o surgimento da
depressão nessa fase da vida.
Idosos em áreas periféricas e com menor poder aquisitivo
tendem a sofrer mais com a doença.
"Se tem mais condições, logo, tem melhor acesso a um
serviço de saúde. Um convênio é caríssimo para um idoso", diz Bernal.
"Quando o idoso está ativo economicamente, consegue uma
consulta como gostaria. Mas, quando se aposenta, o plano consome quase todo o rendimento
dele."
Além disso, especialistas apontam que outros fatores
psicossociais favorecem o surgimento da condição, como mudanças bruscas na
rotina.
"Na verdade, envelhecer é conviver com perdas. Quando
você se aposenta, por exemplo, você também perde seu papel social", afirma
Ferreira.
'Não sentia vontade de fazer nada'
Durante quase 30 anos, a aposentada paulista Jairê Marques,
de 84 anos, trabalhou como técnica de laboratório em uma universidade em São
Paulo.
Quando se aposentou e começou a ficar em casa com mais
frequência, ela notou que o sentimento de tristeza não passava.
Mesmo suspeitando que poderia ser depressão, ela destaca que
anos atrás não se falava na doença como agora, o que dificultava o acesso à
informação.
"Meu diagnóstico de depressão foi depois da minha
aposentadoria. Eu sempre fui um pouquinho depressiva, mas, no começo, nem sabia
o que era depressão", diz.
Jairê afirma ainda que, como amava o que fazia, sair do
trabalho foi um dos gatilhos para a mudança no humor.
"Depois que me aposentei, fiquei muito mal e passei uns
anos assim, procurando alguma coisa para melhorar", afirma.
Para tentar entender o que sentia, a aposentada recorreu ao
Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Começou um tratamento com uma psicóloga, mas precisou ser
encaminhada a um psiquiatra. Foi então que recebeu o diagnóstico de depressão.
Segundo a aposentada, ela sentia muita angústia e tinha
pensamentos negativos com frequência.
"Não sentia vontade de fazer nada. É tanta coisa que a
gente sente que não dá nem para explicar o que era pior."
Ela não relutou em se tratar e seguiu a linha terapêutica
com medicações e atividades de arte.
"Já estava com quase 60 anos, e o tratamento foi um
alívio muito grande. Não queria continuar vivendo daquela forma", conta.
Jairê conta que teve diagnóstico de depressão após se
aposentar
Jairê conta que teve diagnóstico de depressão após se
aposentar
© Arquivo pessoal
Na época, ela ainda teve que lidar com o falecimento do pai
e, alguns anos depois, com a morte da mãe, que partiu aos 94 anos e tinha
sintomas de demência.
"Graças a Deus, tive condições de acompanhar (minha
mãe). Nós morávamos juntas, e essa foi a parte principal. Se eu não estivesse
bem, não conseguiria", afirma.
Depois desse episódio, Jairê seguiu com o tratamento e,
hoje, já são quase 24 anos de acompanhamento e medicações.
Ela diz ter sido importante ter recebido um diagnóstico
precoce e defende que é preciso acabar com o preconceito em relação à
depressão.
"Dou a maior força para as pessoas da terceira idade
que estão com problema, nem todas as pessoas aceitam, mas hoje em dia já está
bem melhor falar sobre depressão."
Sintomas podem ser confundidos
O diagnóstico da depressão em idosos pode ser difícil devido
à semelhança com outras doenças mentais, apontam especialistas.
Diferentemente do quadro em um jovem, em que os sintomas
ficam em geral mais evidentes, em pessoas mais velhas, a condição pode ser
"mascarada".
"O paciente pode estar com alguma alteração cognitiva e
os sintomas podem ser confundidos com depressão e vice-versa", diz o
geriatra Leonardo Bernal.
"Não é raro um quadro depressivo ser confundido com
demência ou Alzheimer."
Por isso, o médico defende que, quando há uma alteração de
comportamento prolongada, é necessário que o próprio idoso ou familiares
busquem uma ajuda médica.
Essas alterações de humor podem vir acompanhadas de sintomas
como dores frequentes, sonolência em excesso, insônia, falta de apetite,
fadiga, tristeza profunda e apatia.
A dificuldade em obter o diagnóstico também ocorre por
negligência dos próprios familiares, segundo os médicos.
"Parece que no idoso tudo é normal. Ele tem uma dor, é
atribuída à idade. O paciente está esquecido, é a idade. Sempre tem um problema
e uma justificativa. O maior estigma ainda é relacionado à idade", destaca
Bernal.
Flavia Maria de Paula Soares, psicóloga e professora da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), diz que outro problema
comum é o idoso ser tratado como criança.
"É muito comum associarem o público da terceira idade a
pessoas ranzinzas, birrentos e até tratá-los de forma infantilizada", diz.
"É importante ter uma escuta dedicada, mas sem
infantilização."
É importante incentivar a participação de idosos em
atividades sociais, grupos de apoio ou clubes para combater a solidão, dizem
especialistas
É importante incentivar a participação de idosos em
atividades sociais, grupos de apoio ou clubes para combater a solidão, dizem
especialistas
Ao procurar ajuda é necessário que o idoso receba orientação
de um geriatra ou psiquiatra.
A psicoterapia também faz parte do tratamento e deve ser
levada em consideração durante o acompanhamento médico.
"Além disso, é importante ter esse entorno que o
escute, que o acolha. Que fale para ele e não dele", ressalta Soares, que
também é autora do livro Envelhescência: o trabalho psíquico na velhice
(Editora Appris, 2021).
Mudanças no estilo de vida também ajudam que uma pessoa que
sofre de depressão recupere o prazer em sua rotina, segundo especialistas.
Durante o processo, é importante que o idoso não receba
julgamentos ou questionamentos, mas sim, uma ajuda de pessoas próximas.
É importante incentivar a participação deles em atividades
sociais, grupos de apoio ou clubes para combater a solidão.
Há unidades básicas de saúde que promovem atividades de
lazer em todo país. Também existem programas de lazer nas unidades do Serviço
Social do Comércio (Sesc), instituição que promove serviços de bem-estar e
qualidade de vida à população.
Apoio dos filhos foi fundamental
Maria Helena teve o apoio da família para buscar um
especialista e investigar por que o sentimento de tristeza profunda não passava
Maria Helena teve o apoio da família para buscar um
especialista e investigar por que o sentimento de tristeza profunda não passava
Mesmo relutante, Maria Helena teve o apoio da família para
buscar um especialista e investigar por que o sentimento de tristeza profunda
não passava.
"Tenho dois filhos que, apesar de morarem em outro
Estado, sempre estiveram presentes, me ligando todos os dias por vídeo",
conta ela.
"Eles percebiam que eu não melhorava daquele estado de
tristeza e começaram a colocar na minha cabeça que aquilo não era normal e que
eu precisava procurar ajuda médica."
Seu filho, Marcus Barroso, de 37 anos, lembra que essa fase
foi bem complicada, ainda mais durante o processo de luto em que todos estavam
vivendo.
"Foi muito duro ver a minha mãe tão triste. Ela sempre
foi muito ativa, mas em um ano, ela emagreceu mais de 10 kg, sendo que já era
magra", diz Marcus.
"Eu e minha irmã moramos muito longe, então a
preocupação era ainda maior, porque não podíamos estar perto."
Depois de muita insistência dos filhos, a aposentada
procurou um geriatra que, na sequência, a encaminhou para um psiquiatra.
O tratamento começou a ser feito com medicação e também com
recomendação de atividades de lazer.
De início, diz Maria Helena, foi difícil se acertar com o
remédio, já que alguns medicamentos davam efeitos colaterais como sonolência e
outros não mostravam muitos efeitos.
Depois de quase três meses, ela conta que começou a sentir
uma melhora visível.
"Fiz algumas sessões de terapia com uma psicóloga.
Ganhei o peso que tinha perdido e voltei à minha rotina de exercícios e de
encontrar as amigas", diz.
"Também entrei para um grupo de oração e comecei um
trabalho voluntário com pacientes de câncer de um hospital público da minha
cidade", diz.
A aposentada segue em tratamento e diz que está se sentindo
bem melhor.
Pela primeira vez desde o diagnóstico do câncer do seu
marido, ela vai fazer uma festa para comemorar seu aniversário, como fazia no
passado.
Maria Helena ao lado do marido: 'Procurar ajuda
especializada é extremamente importante', diz
Maria Helena ao lado do marido: 'Procurar ajuda especializada
é extremamente importante', diz
Aos poucos, Maria Helena está retomando os hábitos que a
deixavam feliz, e reforça a importância de não tratar a depressão como tabu.
"Por mais que a gente tenha aquela resistência de achar
que a saída para a depressão está na fé, na oração, depressão é uma doença como
qualquer outra", diz.
"Precisa de um tratamento em várias frentes, e o
remédio é uma delas. Procurar ajuda especializada é extremamente
importante."
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